2007

Crítica : Invisíveis

2007

Invisíveis

Uma das coisas que separam a Semana de 22 do que acontecia na mesma época na Europa é que aqui a industrialização e suas conseqüências eram bem-vindas, algo a ser integrado na paisagem bucólica e rural. Lá, ficavam pinturas em tons de cinza de máquinas, fábricas e operários, com a industrialização se contrapondo a um ideal burguês de casas de campo, aves. Aqui, a estrada de ferro de Tarsila cuspia cores em meio a bananeiras.Não se trata mais de industrialização nem de Tarsila mas é daí que vem o fio.

Na exposição de Camille Kachani na Galeria Anna Maria Niemeyer (Rio de Janeiro), há um vídeo que o artista fez em 2005. Não faz parte, portanto, das pesquisas expostas, grandes montagens de pelúcia e de emborrachado E.V.A. Mas mostra a continuidade de um pensamento. Nesse vídeo, chamado de Pegando tudo, por cinco minutos e meio vemos um carrinho de duas rodas, desses que às vezes acompanham moradores de rua que lá empilham seus pertences. O carrinho e seu proprietário andam pelo centro deteriorado de São Paulo, uma zona de cortiços e comércio popular, o Viaduto Santa Cecília, a Amaral Gurgel. No áudio ouvimos ele cantarolar uma meia frase musical. Há cartazes de compra de ouro. Alguém berra que três pacotes de alguma coisa saem por um real. O carrinho e seu conteúdo estão pintados de dourado. Mas fazem parte de, e andam por, um lixo pós-industrial da megacidade.

Na exposição, pelúcia e emborrachado constroem objetos desse mesmo entorno: caçambas de lixo, engradados de bebidas. Fora da exposição mas dentro da mesma série, há um pacote de Omo, um liquidificador, uma Kombi, um sanduíche de fast-food. O descarte. Mas aí está. A textura e as cores de Kachani mostram não o repúdio mas uma espécie de acolhimento que fica, tal como o dourado do morador de rua, entre uma ironia e uma real valorização. A deglutição de Tarsila continua, agora com os restos que ficaram da aventura.

Há um outro ponto a estabelecer nobre linhagem na atual contemporaneidade do artista. Os objetos representados em um único plano têm, todos eles, um dentro. A fronteira a ser ultrapassada pela deglutição é estabelecida, portanto, não como binária (o lado de cá e o lado de lá) mas como tendo, a própria fronteira, um meio-de-campo híbrido. Caçambas, liquidificadores e engradados guardariam em um interior – ou em um anterior (à colocação da pelúcia e do emborrachado) – o registro mais duro e seco de uma geometria que é apresentada amolecida no plano exterior. Mas nem aí. Os poliedros se inserem na forma difícil que o construtivismo adquiriu por aqui. No oco apontado dos objetos só podem existir formas desmanchadas ou em constante transformação.

Elvira Vigna
* Elvira Vigna é escritora e crítica de arte, com formação em letras e arte, e mestrado em teoria da significação pela UFRJ.
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