2016

Crítica : Identidade como recusa

2016

Identidade como recusa

Identidade é uma palavra ambígua que pode remeter tanto à ideia de pertencimento quanto à radicalização das suas expressões. Ao longo do século 20, muitos foram os autores que debateram seus sentidos, apontando para aquilo que ela carrega de subjetivo, de construído. Stuart Hall era um deles. Em The Question of Cultural Identity (1996), o autor discute a identidade como um processo em constante atualização. “Sempre há algo de ‘imaginário’ ou fantasiado sobre a sua unidade. Mas, ela sempre permanece incompleta, sempre em ‘processo’, sempre ‘sendo formada’”, afirma Hall.

Com efeito, a visão de identidade como uma experiência em constante movimento é cara a muitos daqueles que têm suas vidas constituídas em meio ao trânsito por diferentes culturas e continentes. Entre referências, memórias e afetos que não cabem em um único idioma, a obra de Camille Kachani parece emergir de situações dessa natureza. Nascido na cidade de Beirute em uma família judaica que, ao longo de quatro gerações, migrou pelo Irã, Síria e Líbano até chegar ao Brasil na década de 1970, Kachani tem sua vida atravessada pelos três grandes monoteísmos do mundo contemporâneo: islamismo, judaísmo e cristianismo. A proximidade do artista à crenças gestadas a partir de uma mesma matriz — que muitas vezes se opõem — se traduz na recusa de adesão a cada uma delas, permitindo-o citá-las como reminiscências em constante atualização. Paradoxalmente, é essa mesma recusa que leva o artista a abordar, ainda que de maneira involuntária, a noção de pertencimento em seus trabalhos.

À escrita — elemento primordial em muitas de suas composições — aderem raízes que se espraiam vertical e horizontalmente (nem sempre em busca do solo). Numa alusão à matéria orgânica que jamais será imóvel, elas apontam para a inevitável passagem do tempo, contrária a tudo que busca retraí-lo ou fixá-lo. Essa continuidade vital e muitas vezes imperceptível remete à forma como Kachani entende a sua própria prática artística. “Trata-se, antes, de uma obra-em-processo infindável”, afirma.

Portadoras de histórias, cada uma das imagens evocadas pelas obras apresentados nessa exposição nos convida a navegar por uma biografia. “São elementos de dentro e de fora”, explica Kachani ao apontar para as porcelanas e granadas armazenadas em um de seus gabinetes.

Mas, o que seria esse “dentro e fora”?

São vestígios de um Líbano prestes a entrar em uma das mais longas guerras civís da história (1975-1990) nos lembrando que, assim como uma xícara de chá, armas e escombros também eram parte da rotina de seus habitantes. Referências íntimas de tempos difíceis, esses objetos se apresentam como elementos de composições que remetem à dimensão política inerente aos espaços públicos, mas também domésticos, da sociedade. Como o cineasta Ziad Doueiri em seu filme West Beirut (1998), o artista sugere que ideologias, alianças e disputas não definem por inteiro o cotidiano de países em conflito. À despeito da guerra, continua-se amando, festejando; continuam, enfim, as atividades mais prosaicas da vida.

Parte de uma pesquisa recente, a série fotográfica exibida aqui também se inscreve nesse contexto. Galhos, folhas, cipós evocam situações que traduzem o confronto da natureza com a condição humana. A floresta, assim como uma árvore, fornece o modelo de capilaridade circular que ocorre na vida de um indivíduo: raízes que desembocam em galhos e frutos que criarão, consequentemente, as suas próprias raízes. Mais uma vez, o (des)enraizamento e sua infindável simbologia se oferecem como chave para a expansão dos significados da obra de Kachani.

Em meio a dualidades que não se excluem nem se opõem, o artista nos coloca face à uma série de conexões improváveis. Talvez essa seja uma maneira de lembrar que nossa própria narrativa também carrega filiações identitárias com as quais nos relacionamos, mas sequer sabíamos recusar.

Sabrina Moura
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