2010

Crítica : Objetos

2010

exposição de Camille Kachani na galeria Anna Maria Niemeyer, no Rio de Janeiro, é composta, eminentemente, de objetos tridimensionais. São em torno de 12 esculturas que, em sua maioria, ampliam insetos: lagartas, formigas, moscas, mosquitos. Em um outro conjunto, fósforos queimados, em escala ampliada, organizam-se como achas de lenha. As obras são feitas de isopor, resina e fibra de vidro, metal e epóxi. O tratamento das peças investe na pletora de cores que se tornam aveludadas pelo material mais recorrente que as recobre: a pelúcia.

Os trabalhos de Kachani nos remetem ao uso de imagens banais, caçambas de lixo, objetos cotidianos, insetos. Porém, além deste interesse, o artista investe na acepção decorativa que nos inclina a uma espécie de nouveau contemporâneo. Sabemos que em torno de 1900 o art nouveau procurou uma certa humanização da indústria. Hal Foster afirma que em torno do ano 2000, voltamos a conceitos daquele fim-de-século: “vivemos outra era de disciplinas difusas, de objetos tratados como mini-objetos, de desenho total, de um Estilo 2000.” Assim, depois de um século, a decoração se apresenta indistintamente, da arquitetura aos cinzeiros, afirma o autor. Sobre tudo isso, vivemos a primazia do desenho, do desenhista que consegue, depois das revoluções do Estilo 1900 à Bauhaus, unir arte à vida.

Ao observarmos os trabalhos de Camille Kachani, esta afirmação de Foster se torna evidente. São desenhos arquitetados por uma crença liberta da autonomia, ou dos dogmas construtivistas. O industrial, o estrutural, o funcional são completamente recobertos pela ficção, pelo efeito. Na montagem das peças, Kachani confirma tal aspiração. O artista explica que imprime as imagens em baixíssima qualidade para capturar a separação das cores. Com isso, do universo do pixel, empreende-se uma “pintura digital”, como ele define. A partir daí, recorta-se cada pedaço de mancha gráfica, reunindo-as numa base que ganhará a cobertura de pelúcia. Há uma operação fotográfica, o que se liga às atividades inicias de Kachani como fotógrafo. Portanto, ainda que o efeito pareça bordado, é muito mais do universo da pintura que tratam tais esculturas. A lógica é retiniana. Investindo-se num contra-senso, há séries denominadas Invisíveis, em que Kachani trata tanto de insetos minúsculos, ampliados nas esculturas, quanto de Kombis e caçambas de lixo, invisíveis para a arte, mas, segundo ele, “encontrados dentro de casa ou num raio muito próximo a nós”. Para a exposição, é como se o artista estivesse atento apenas ao que está no ateliê e em seu entorno.

O uso da pelúcia humaniza tais objetos. Ou melhor, domestica imagens marcadas pela repulsa e pelo desprezo. Há uma competente contradição em tratar com artesania imagens microscópicas, tornando-as retinianas. Aproximando-as do sujeito. Tais sentimentos vão ao encontro do desejo do artista em evidenciar o discurso intimista, em ressaltar a vontade do toque, da carícia, fato potencializado pelas cores atraentes das peças. Assim, Kachani reverte a crítica que considerara degeneradas e eróticas as tentativas de ornamentar a produção industrial. Camille Kachani cria insetos imbuídos de uma lógica ornamental, cores separadas, vibrantes. A pelúcia, a pele, o toque, o erotismo evidenciado.

O artista nos informa que há uma posição estética em buscar “beleza e atração no banal”. Tal lógica já fora empreendida pela pop de Oldenburg. Mas, hoje, Kachani em vez de ativar o sistema dos produtos publicitários, foca o próprio sistema da arte que, ironizado por Damien Hirst, reveste o objeto de brilhantes verdadeiros. O surrealismo de André Breton já entendia as mudanças do mundo externo como confirmações de partes subjetivas, dos desejos do “eu”. Na lógica de Kachani estamos diante da high art, filtrada pela low art. Ao mesmo tempo, o artista investe em esculturas para ocupar paredes e chão, sem se deixar seduzir pela “estética relacional”, pela primazia das instalações com participação do espectador.

O estetizado e o utilitário são, sem dúvida, as heranças de Camille Kachani. Com isso, o artista ativa um mundo onde tudo passa pela sedução do desenho. “O poder do desenhista, hoje”, afirma Hal Foster, “é ainda maior que antes”. Não mais o artista como engenheiro, nem o autor como produtor, mas o desenhista da lógica industrial que se rende ao efeito cromático, à ampliação digital, à narrativa fantasiosa, a um surrealismo dos sentidos. Uma lógica que congrega, segundo Deleuze, como no mundo invertido de Alice, os paradoxos dos efeitos de superfície. São efeitos de superfície a visualidade de Kachani. Uma visualidade expandida pelas lentes de um microscópio.

Kachani, assim, reitera uma reconciliação da escultura com a mercadoria e o signo, promovendo uma “desterritorialização da imagem e do espaço”. Deslocam-se insetos, embalagens, fósforos queimados, desterritorializando-os, tornado-os gigantes, espetaculares. “Os desenhistas contemporâneos, mais do que críticos do espetáculo, são seus navegantes.”

Tudo é imagem, nada de interioridade. Nem por isso, a crença nesta arte deixa de empreender transcendências, transfigurações. Uma apoteose de mundos invisíveis. Walter Benjamin considera sobre uso do ornamento no art nouveau que “a transfiguração da alma solitária parece sua meta”. Camille Kachani trata dos paradoxos que num mundo da pós-produção abriu espaço a lógicas fantasiosas, sedutoras e, ao mesmo tempo, críticas aos efeitos do mundo capitalista, para além das retinas. Os brilhantes, poderíamos afirmar, sempre serão falsos.

Marcelo Campos
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