2022

Crítica : Orquestra Assinfônica Fotossintética

No homem, tudo é natural e tudo é fabricado, como se quiser, no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo tempo não se furte à simplicidade da vida animal.

Maurice Merleau-Ponty1

É comum pensarmos os conceitos de natureza e cultura como díspares. A modernidade se pauta pela dicotomia dessa ideia, como se a partir da construção de algo que nos alimenta intelectualmente nos distanciássemos de nossa origem como seres que constituem o meio ambiente. Afinal, no comportamento animal, os signos permanecem sempre sinais e não se tornam jamais símbolos2. Como afirma o filósofo francês Merleau-Ponty, somos uma junção do natural e cultural e isso talvez seja a singularidade e, porque não, a potência e o assombro do Homo sapiens. É sobre a afluência desses dois territórios que se trata a obra do artista libanês radicado no Brasil, Camille Kachani, e que transborda para a exposição Orquestra Assinfônica Fotossintética, em cartaz na Zipper Galeria.

O processo de transformação da natureza em cultura e do retorno inevitável da cultura à natureza está no cerne da pesquisa do artista visual, que movimenta sua criação a fim de questionar de forma poética as diferentes visões sobre essa espécie de ciclo vital. Tal indagação percorre também as paisagens sonoras que Kachani sugere ao espectador ao colocar uma orquestra silenciosa em meio ao espaço expositivo. Os instrumentos eleitos cuidadosamente pelo artista são mutantes em um futuro distópico – ou será que poderia se dizer utópico?

A tridimensionalidade de suas obras – vale lembrar que, apesar da afinidade anteriormente expressa pela pintura e fotografia, Kachani deu-se na produção contemporânea já diretamente no universo escultórico – foi sendo desenhada a partir da apropriação de tais objetos sonoros. Em um profundo estudo de sua fisiologia, nascem figuras que mimetizam tal artesania em plena metamorfose. Entre cordas, volutas, estandartes e teclas, nascem ramos, flores, folhas e indícios da vida animal, como um despretensioso ninho de pássaro em uma das cavidades de um trombone. A sensação de se escutar a musicalidade delas coloca o corpo humano em alerta, mesmo pela evidência que nos propicia o objeto de estarmos longe do momento em que a peça deixou de ser tocada. Quem agora penetra em tal musicalidade são aquelas que nos permitem a sobrevivência na Terra tal qual conhecemos. Por entre veios, galhos e seu pulsante verde realizam a tão estudada magia da fotossíntese permitindo assim, e apenas dessa forma, que oxigênio e luz ajam de forma exuberante, dedilhando suas entranhas. A sonoridade que elas nos causam é a fonte de nossa própria existência, já que não existem seres humanos sem o reino vegetal, nem cultura sem natureza. Já diria o compositor, pianista e maestro russo Igor Stravinsky que “um bom compositor não imita, ele rouba”. E é disso que se trata tal fusão de Kachani. De um roubo direto da beleza da mais pura expressão cultural pelos meandros da natureza, para onde e tudo sempre volta, em um ciclo inexorável ao eterno retorno.

Ana Carolina Ralston
1 Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257.
2 Merleau-Ponty, M. Estruturas de Comportamento. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 146.
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